Viagem ao Hospital de Bonecas por Manuela Cutileiro

1989
Hospital de bonecas
Hospital de bonecas

Na rua, pessoas apressadas correm de um lado para o outro, vendedores de castanhas apregoam o seu produto e cauteleiros prometem a sorte grande. No toldo está escrito Hospital de Bonecas… Éaqui mesmo. Espreitamos e, finalmente, decidimos entrar.

Na rua, pessoas apressadas correm de um lado para o outro, vendedores de castanhas apregoam o seu produto e cauteleiros prometem a sorte grande.

Se olharmos à nossa volta, parece que acabámos de chegar ao centro do mundo, tal é a mistura de diferentes raças.
Avançamos à procura da porta com o número 7… Será isto?

No toldo está escrito Hospital de Bonecas

É aqui mesmo. Espreitamos e, finalmente, decidimos entrar.

Manuela Cutileiro, a actual proprietária deste estabelecimento, estava à nossa espera…

“O Hospital de Bonecas sempre foi aqui neste sítio, onde antigamente era o Mercado da Figueira, e nasceu como uma pequena loja onde se vendiam ervas. Como, possivelmente, a dona teria algum tempo livre e algum jeito, ela começou a arranjar bonecas.”

Corria o ano de 1830 e a Baixa era muito diferente do que é agora… De geração em geração, o negócio foi passando ao mesmo tempo que crescia a parte dedicada às bonecas. No entanto, a tradição de uma ervanária à moda antiga manteve-se e, ainda hoje, continua a funcionar.
Manuela Cutileiro ainda se lembra dos ramos de louro pendurados à porta da loja…

“Hoje damos mais importância ao Hospital e um bocadinho menos às ervas. Continuamos, no entanto, a ter clientes antigos que aqui compram os nossos chás, sem qualquer tipo de mistura.”

Aqui também se dirigem pessoas de todas as idades e de todas as classes sociais para arranjarem uma boneca, um brinquedo especial.

“Os bonecos têm muito haver com as recordações das pessoas, com a sua infância. Cada uma delas olha para o seu boneco com uma perspectiva diferente, com uma série de ideias diferentes.”

Manuela Cutileiro

Daí que, por detrás do balcão da sua loja, Manuela Cutileiro já esteja habituada a ouvir muitas histórias…

O Hospital surgiu, aliás, na vida desta educadora de infância desde muito cedo… Algumas das suas recordações ficam no ar…

“Os meus avós sempre aqui viveram neste prédio, de maneira que eu sempre conheci o Hospital.”
E como é que ele veio parar às suas mãos? Manuela Cutileiro assegura que esta foi uma daquelas ideias loucas, “de quem não tem a cabeça bem assente nos ombros.”

Hospital de bonecas
Hospital de bonecas

Na iminência da loja fechar, devido à avançada idade dos seus proprietários, a ideia de que “isto acabava e que íamos ver uma qualquer outra coisa – mais um snack sem história – levou-nos a agarrar nisto. Saudosismo de infância talvez…”

Quanto aos brinquedos que por aqui passam, todos têm origens muito diferentes. Nem todas são peças raras ou muito antigas, assegura-nos.

Desde as antigas bonecas com cara de porcelana às barbies e kens que se compram num hipermercado, tudo se pode aqui encontrar.

“Nós não vemos as bonecas com o espírito do coleccionador que espera uma peça muito antiga ou valiosa. Interessa-nos muito mais entender a amizade que as pessoas têm com as bonecas, o que vêem nelas. Temos feito trabalhos em bonecas que não valiam 5 tostões, para falar verdade, mas que no entanto são muito valiosas para quem as traz.”

Quando lhe falamos dos actuais brinquedos “descartáveis”, Manuela Cutileiro não se mostra preocupada, dizendo que o que as pessoas aqui trazem “não é mais uma boneca, mas a Boneca.”

Apesar desta forte relação, por vezes acontece que os brinquedos acabam por ser esquecidos. Neste caso, alguns deles acabam por ser oferecidos, enquanto outros servem para os transplantes. Todo o tipo de maleitas encontram aqui solução, recebendo cada boneca um tratamento adequado à sua “doença”.

Como começa a consulta

Tudo começa por um diagnóstico geral, ao qual se segue a apresentação de um orçamento. Cabe, depois, à pessoa decidir se quer ou não avançar com o “internamento”.

Depois de passar pelas “urgências” (ou pelo balcão), a boneca sobe até à oficina. Aí, é colocada na sala que lhe corresponde: das cirurgias plásticas, dos transplantes, etc.

Esta ideia de identificar as salas com as situações que encontramos num hospital “normal”, pertence à filha de actual proprietária e tem tido muito sucesso.

“Temos que tirar um certo espírito da coisa, senão isto não tinha graça nenhuma. É muito estimulante para os miúdos, despertando-os mais para o trabalho que é feito em cada uma das salas. Eles acham graça, até porque muitos já passaram pelos hospitais e reconhecem a comparação.”

Além das bonecas, o Hospital ainda restaura outro tipo de peças antigas como porcelanas e imagens.

Esta é uma área recente “criada por nós. Tudo começou com um dos meus filhos, que frequentou a Fundação Ricardo Espírito Santo, e que quis dar uma mãozinha nestas coisas. Hoje, temos cá umas amigas dele, lá da Fundação, que trabalham connosco.”

Mas há mais… Na loja do Hospital, ao lado do grande pronto-a-vestir para as bonecas, também se pode comprar roupa para bebés prematuros.

“Começamos por fornecer a maternidade e depois tivemos mesmo que fazer uma colecção paralela à nossa, cujo modelo é um boneco – o nenuco.”

O Hospital também não se esquece de peças especiais: bonecas de determinadas épocas e mesmo imagens, também têm direito a um vestuário adequado.

No Carnaval, disfarces originais também chamam a atenção de quem passa pela Baixa. Esta é, aliás, uma das alturas do ano em que o movimento na loja é maior.

Devido a esta oferta única, os clientes continuam a não faltar…

Com tanta magia no ar, não é de admirar que escolas procurem visitar o Hospital de Bonecas, sendo muitos os telefonemas de professoras e educadoras. E até, por vezes, das próprias crianças.

Manuela Cutileiro põe de lado, no entanto, qualquer pretensão em transformar o Hospital num museu ou algo parecido, assegurando que “queremos apenas ser um hospital de bonecas.”

Para o futuro mais próximo estão previstas obras para a loja, de maneira a remodelá-la e a mudar-lhe o visual.

Quanto à oficina, o único projecto diz respeito a “um cantinho de bonecas como há nos jardins-escola. Este é um espaço sobretudo dedicado às crianças que nos visitam. O que pretendemos é dar uma perspectiva histórica dos materiais e das bonecas ao longo dos séculos.”

E, claro, relacionar as bonecas com a maneira como as próprias pessoas se vestiam e como eram… Um maior fulgor, numa zona onde a tradição já não parece ser a mesma…

“As pessoas desabituaram-se a vir à Baixa. Esta devia viver, na minha opinião, de lojas tradicionais, com uma certa qualidade.”

A venda ambulante e a insegurança parecem ser, segundo a proprietária, os maiores problemas desta zona comercial. O caso da recuperação do centro de histórico de Madrid, por exemplo, parece ser um exemplo a seguir.

Mas o que tem de tão especial o Hospital de Bonecas? Manuela Cutileiro não tem dúvidas quanto ao que mais lhe atrai…

“O que eu mais gosto é a diversidade de trabalho que aqui encontro, nada é igual, cada pessoa pede-nos uma coisa diferente. Aparecem-nos aqui as coisas mais estranhas… Nada é monótono, o que é importante para quem, como eu, gosta de trabalhar com crianças.”

E no meio de tantas histórias, Manuela também deve ter as suas… “Nesse aspecto, fui muito privilegiada, sendo neta e filha única e morando por cima do Hospital.”

Conta-nos que tinha muitos bonecos, mas que os estragava rapidamente para os poder ver a arranjar. “De todos eles, continuo a ter uma boneca toda roída, que já podia ter substituído as peças, mas que mantenho religiosamente assim, porque foi assim que a deixei.”

Um lugar, sem dúvida, onde as recordações são preservadas…

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