Natália Carrascalão: Viagem a Timor Loro Sae

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Viagem a Timor Loro Sae - casa
Viagem a Timor Loro Sae - casa

Natália Carrascalão, uma timorense, mostra-nos o drama vivido na primeira pessoa, com toda a angústia e determinação características daquele povo. numa viagem a Timor Loro Sae.

Pouco passa das três da tarde, numa tarde iluminada pelo sol de Setembro. Ligeiramente perdida, procuro seguir as indicações que Natália Carrascalão me dera no dia anterior, por telefone. A ideia é encontrar um centro social onde vivem apenas timorenses, algures em Queluz.

Viagem a Timor Loro Sae

Da conversa do dia anterior, recordo apenas que devo encontrar uma agência bancária, que fica numa esquina. Resolvo ligar-lhe para o telemóvel, a pedir ajuda. Concordamos que o melhor mesmo é ela vir ter comigo.

Minutos depois, Natália vem ao meu encontro, ao volante do seu Renault Clio branco. Branco a cor da paz. Será coincidência? Concluo que sim, e sigo atrás, por uma rua larga, de prédios modestos, quase todos brancos.

Paramos junto ao número 59 e subimos ao primeiro andar. Natália explica-me que ali só vivem famílias timorenses e indica-me a porta da casa do seu sobrinho José. José é um dos irmãos de Manelito Carrascalão, assassinado aos 17 anos, pelas milícias pró-integração em Díli, em meados de Abril, durante o assalto à casa do pai, Manuel

Do lado de fora da porta, leio uma única palavra, em letras grandes: TIMOR. Começa aqui a minha viagem ao encontro de um povo marcado pelo sofrimento, mas também pela coragem.

O primeiro olhar vai para a fotografia, em tamanho grande, de Manelito, na parede do hall de entrada. Uma foto dos “dias felizes”, antes da fatídica manhã de 17 de Abril.

Mais tarde, Natália há-de mostrar-me fotografias de Manelito,

depois do ataque. São imagens de horror, que não esquecerei. São, explica-me, “as provas que nós temos que ter” de tudo o que passa em Timor. Lá estão também as fotos do funeral, em que não falta a presença dos militares indonésios. Pergunto-me porque motivo, nem na hora da morte, esta família tem direito a uns momentos de privacidade

No memorial a Manelito, por baixo da foto, há também uma pequena mesa, com duas velas sempre acesas. Entendo-as como uma homenagem a uma vítima inocente, mas também como uma réstia de esperança numa paz que tarda em chegar.

Natália apresenta-me aos sobrinhos, quase todos crianças “Venham cá cumprimentar a senhora” Nos olhos de todas, noto uma tristeza imensa, noto também um surdo pedido de ajuda, envolto num manto de sinceridade. Depois, a tia faz questão de me mostrar a casa.

Uma cozinha, uma casa de banho e três quartos relativamente grandes, todos eles com mais do que uma cama ou com beliches. O mobiliário é escasso, apenas o necessário para comer e dormir.

Num dos quartos, há uma televisão “foi oferta; as pessoas têm ajudado muito; agora, a preocupação é a escola; afinal, são oito crianças; eu vou fazendo o que posso”, conta Natália. .

Seguimos depois para a cozinha, onde me oferecem um saboroso café, à medida que vão deitando para fora a imensa dor pela tragédia que se agravou em Timor, nas últimas semanas.

Mais do que simples jornalista, sinto-me uma amiga. É a primeira vez que visito uma família timorense, mas tratam-me como se me conhecessem desde sempre.

Natália fala-me da saída do irmão Manuel, a caminho de Jacarta para Lisboa, por causa de variadas ameaças de morte; fala-me das incertezas sobre o paradeiro de familiares e amigos; conta-me histórias de mulheres degoladas, simplesmente porque não se deixaram violar pelos indonésios.

E as lágrimas vêm-lhe aos olhos, quando fala nas crianças refugiadas, sem leite para beber há vários dias e sabe-se lá por quanto tempo “nós, sabe, enquanto houver árvores, lá nos vamos desenrascando agora, o leite para as crianças”. Por esta altura, os números do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados contam cerca de 600 mil deslocados, desde 30 de Agosto, o dia do referendo. Grande parte são crianças, sem leite que os ajude a crescer, sem saber sequer se vão ver o sol nascer amanhã.

Crianças que podem já não estar vivas, quando a força internacional de paz entrar em solo timorense. Natália confessa os receios de que os soldados venham a sofrer o drama na pele, “porque os militares indonésios vão, com certeza, fazer-lhes frente, especialmente aos australianos”. Receia que seja tarde demais. Receia “encontrar um Timor vazio de timorenses”.

Natália Carrascalão

Natália Carrascalão, 46 anos de idade, é um dos onze irmãos Carrascalão ainda vivos. Filha de mãe timorense, de Baucau, e de pai algarvio, de São Bráz de Alportel, veio para Portugal dois meses antes da invasão indonésia, em 1975, já lá vão 24 anos. Depois do casamento com um oficial do exército português, veio passar uns tempos a Portugal. Dois meses mais tarde, as tropas de Jacarta invadiram Timor, e nunca mais pôde regressar.

Mãe de um filho de 23 anos, nascido em Portugal, descreve as mulheres timorenses como “mulheres simples, grandes mães, valentes lutadoras, que quando se agarram a uma causa, vão com ela até ao fim, e enquanto não conseguem atingir os objectivos a que se propõem, não sossegam”.

E tem sido esse espírito de luta e de sacrifício, que as transformou, desde sempre, “no grande suporte dos maridos na evolução de Timor”. Um apoio que se manteve e se intensificou nos anos difíceis, sem fim à vista, da ocupação indonésia.

Natália define a resistência das timorenses como “mais reservada, mais nos bastidores, tentando transmitir aos seus filhos aquilo que os pais, os homens, fazem pela causa timorense”.

Uma luta que não deixa de ser “corajosa e determinada”. E conta como o seu filho, português, “que praticamente não conhece Timor, sabe tanto de Timor como os timorenses, porque consegui transmitir-lhe essa causa; acho que ele, tendo nascido em Portugal, sendo filho de pai português, é tão timorense como os timorenses que estão em Timor”.

Mas nem todas as timorenses se ficam por esta resistência “mais discreta”. Há também as que lutam nas montanhas, ao lado dos guerrilheiros das Falintil. Natália conta, com um sorriso, que há, pelo menos, trinta guerrilheiras, “mas, nesta altura, esse número deve ter aumentado!”.

“O que leva estas mulheres a enfrentarem a vida no mato? O que as leva para lá?”, pergunto, sem deixar de imaginar como será a vida de uma guerrilheira das Falintil. Natália responde, com a determinação à flôr da voz, que é precisamente “o descontentamento, as constantes violações de que têm sido vítimas” ao longo de mais de duas décadas de presença indonésia.

Explica-me que “irem para junto dos homens das Falintil, é a forma de se manifestarem; e visto que os timorenses são poucos, todos os braços são necessários” para pegar em armas e combater pela libertação.

Por esta altura, com o microfone e o gravador a funcionar, apercebo-me do repentino silêncio que se fez naquela cozinha. Onde está o corropio que senti ao entrar naquela casa? Para onde foram as crianças? “Sabem que estou a dar uma entrevista” e, por isso, sabem que não devem estar aqui. É o retrato de uma família timorense, organizada, apesar dos momentos negros porque tem passado.

Vêm-me à memória as imagens dos timorenses refugiados na sede da missão das Nações Unidas em Díli. Apesar do pânico e da incerteza do momento seguinte, limitaram-se a fazer silêncio e a rezar. “Como é possível manter a calma e a organização, numa situação assim?”, pergunto.

A resposta é clara: só a calma e a organização, permitem conquistar alguma coisa. Só assim se pode reconstruir um país em que se viva em paz e em liberdade. Só assim “podemos gritar bem alto que ainda existimos, que não queremos ser um povo dispensável e, muito menos, descartável”.

Calma e organização, aliadas a uma grande Fé. A Fé dos timorenses é “inquestionável é a última esperança dos timorenses. Jamais deixaremos de ser católicos. Deus não dorme; Deus é grande; e, até ao último momento, vai estar sempre connosco”.

Só assim “podemos recomeçar do zero”, “reconstruir um país a partir do nada”. Uma reconstrução em que o papel das mulheres é incontornável. Em todas cresce o sonho de voltar o mais depressa possível, sem que esse “mais depressa” tenha uma data no horizonte. Natália garante que, quando regressar, não quer “ter qualquer cargo em governo nenhum”.

Há muito para fazer, “especialmente a nível humanitário. Podemos tomar conta das crianças que vão ficar orfãs, tratar das pessoas da terceira idade, ensiná-las a ler e a escrever”, como fez com a mãe.

Nos últimos meses, e ainda mais, depois do referendo, Natália Carrascalão tem-se desdobrado em iniciativas para denunciar a situação no território. Ainda assim, confessa-se uma mulher “completamente amargurada”, à mistura com um profundo sentimento de “impotência por não poder fazer mais”.

Mais do que isso, não esquece o dia em que, através da RTP, apelou ao voto na independência. Recorda-o com visível tristeza no olhar, e murmura que “também é culpada” do que está a acontecer. Afinal, não acredita que “eles, algum dia, deixem Timor em paz”

Desligado o gravador, José e as crianças juntam-se de novo a nós. Com ele, traz um envelope cheio de fotografias. “Impressiona-se muito?”, perguntam-me. “Então, é melhor não ver”. Não quero ver é a melhor forma de conhecer o motivo dos protestos sem fim dos portugueses, nas últimas semanas. É a maneira mais real de ver o que nos causa uma indignação que não conseguimos definir.

 

Viagem a Timor Loro Sae - casa
Viagem a Timor Loro Sae – casa
Viagem a Timor Loro Sae - refugiados
Viagem a Timor Loro Sae – refugiados

 

 

 

 

 

 

Passo, então, uma a uma, demoradamente, as fotografias da destruição.  Começa pelos “dias felizes”. Os dias em que o irmão, Manuel, dava abrigo a mais de 100 refugiados. Depois, as imagens das mortes, dos ataques, dos feridos, dos mortos, do funeral de Manelito.

 

Viagem a Timor Loro Sae - Manelito
Viagem a Timor Loro Sae – Manelito
Viagem a Timor Loro Sae - Manelito
Viagem a Timor Loro Sae – Manelito
Viagem a Timor Loro Sae - Manelito funeral
Viagem a Timor Loro Sae – Manelito funeral

Foto a foto, vão-me explicando o que vejo. Em todas elas, há sempre, pelo menos, um militar de Jacarta. Até mesmo dentro de casa de José Carrascalão, enquanto se prepara o funeral de Manelito. Presentes, apenas.

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