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Iva Delgado, memórias sem medo de liberdade e democracia

Iva Delgado
Iva Delgado

Na primeira abordagem da Mulher Portuguesa respondeu com entusiasmo ‘Adoro dar entrevistas’. Estava aberto caminho, não para uma entrevista mas uma aula de história e de memórias daquele que foi o General Sem Medo.

Iva Delgado

Com uma herança tão especial que preenche ideais de liberdade e democracia, pode tornar-se difícil não cair em tentação de uma certa ‘pregação’ mas Iva Delgado é peremptória: ‘ Não ando a fazer proselitismo, não sou uma missionária a desfraldar bandeiras, nem tenho o sentido de missão. Vivo a vida no dia-a-dia. Se alguém me questiona sobre determinado assunto, respondo mas não tento incutir nada.’

A conversa, informal como fez questão de frisar, decorreu na Fundação Humberto Delgado e foi um discorrer de histórias que encantaram quem ouviu. Aliás, esse é o principal objectivo da Fundação, levar as histórias do passado recente aos mais jovens, porque como Iva Delgado afirma: ‘Tenho imensas histórias para contar’.

A primeira questão que ocorre é acerca da forma como gere essa memória. ‘É uma grande responsabilidade. Trata-se de um nome que adquiriu um estatuto histórico por direito próprio e imprime à família um certo peso. Já me têm perguntado se cheguei a conhecer o meu pai, uma pergunta engraçada porque parece que ele já está num panteão muito longínquo da história. Conheci muito bem, houve uma parte da minha vida em que esteve sempre presente e daí veio esse encantamento.’

Palavras proibidas

As palavras fluem e o tema da liberdade surge logo. ‘Não consigo imaginar-me outra pessoa e acho que o que sou hoje e tudo o que faço, tem a ver com o baptismo de liberdade que recebi. As eleições de 1958 aconteceram quando era muito nova e romperam com o esquema obsoleto de Salazar. Muitas pessoas nunca tinham visto a palavra liberdade impressa e alguém me contou que, ao sair de casa e ver um cartaz com a imagem do Humberto a dizer ‘Liberdade’, chorou porque nunca tinha visto a palavra escrita que, tal como democracia, eram palavras proibidas.’

A memória da família

Humberto Delgado

Humberto Delgado imprimiu um cunho muito especial à história. E na família? ‘Na família já sabemos tudo e por isso ninguém fala disso. Há uma história engraçada passada com um miúdo que pertence à família numa linha colateral e que um dia me disse: “Sabes que tive um bisavó que foi assassinado?” e achei muita graça porque ele adoptou a imagem de Delgado como se fosse o verdadeiro bisavô.’

Das conversas do pai, Iva retirou a ideia para o seu primeiro livro sobre Portugal e a Guerra Civil Espanhola. ‘A Guerra de Espanha marcou a geração dos meus pais. O meu pai criou a primeira carreira de aviação civil Lisboa Madrid, lembro-me bem porque baptizei, com quatro anos de idade, um pequeno avião no aeroporto, com a presença do adido militar espanhol.’

Com o pai mantinha uma relação muito afectuosa ‘lembro-me que quando ele entrava em algum local, fazia-o sempre com uma grande dose de energia e exuberância. Por vezes os miúdos nas escolas perguntam-me se foi tudo mau e digo que só tenho boas recordações da minha infância, que me acompanharam até hoje.’

Somos sobreviventes

Numa ditadura todas as palavras têm de ser pesadas. ‘Quando se interioriza a ditadura, sabe-se que não se pode falar de determinadas coisas e não se fala, ponto final. Fui imbuída desse espírito e seguia um determinado tipo de ícones que eram a minha realidade, como Fátima e a Mocidade Portuguesa. Na minha casa havia uma crítica constante, neutralizada pelos elogios da minha mãe, uma admiradora da obra de Salazar.

E, criada com esse estereotipo, quando em 1958 vi o reverso pela voz do povo que coincidiu, por um momento, com a voz de um homem, fiquei espantada e ofendida, porque não tinha aberto os olhos antes. Quando se bebe a liberdade, bebe-se às golfadas. Mesmo que aquele momento tivesse sido uma derrota, há derrotas que são vitórias.

Claro que em casa encarámos a derrota o pior possível porque na altura parecia que tudo desabava à nossa volta. Não digo que tenhamos entrado em pânico, mas pelo menos raciocinámos como sobreviver a tudo isto. Também se aprende, e muito, nessa luta pela sobrevivência depois de um assunto como este. Somos uns sobreviventes.’

Como é que foram capazes!

E depois das eleições? ‘O movimento de 1958 despoletou tudo, passámos depois pela separação do exílio de seis anos até à morte em 1965 e aí não acabou, mas recomeçou tudo. E foi uma outra espécie de luta, feita com muita prudência e cautela pela minha mãe com crianças menores e a questão ‘como é que vamos aguentar isto?’ No ano da morte já tinha mais consciência do assunto e pensei “Chegaram a este ponto, como é que foram capazes!”, e aí nasceu esse sensação e certeza de que a impunidade é a pior coisa que pode existir.’

Recordação sem palavras

‘A recordação que mais me marcou foi quando o meu pai estava no exílio e não sabíamos onde ele estava, porque tinha de apagar todas as pistas e evitar a rede que a PIDE tinha montada, e um dia toca o telefone e era ele. Isso era uma coisa fora do comum porque um telefonema era uma coisa caríssima e difícil, e quando ouvi a voz dele, tive um sentimento de que ele estava no norte de África, ainda hoje não sei muito bem como é que me apercebi disso, mas não fui capaz de dizer uma palavra. E veio alguém da minha família que pegou no telefone e falou com ele, mas eu não consegui dizer uma palavra. .

Há espera do pior

E chegou a revolução de Abril. ‘Não senti nenhuma espécie de alegria, porque estava sempre à espera do pior. Não me apercebi logo do que se estava a passar, porque nessa altura estava em casa a tomar conta das minhas crianças ainda bebés, a passar noites horrorosas e a única coisa que queria era passar uma noite sossegada. Não tinha havido contestação ou qualquer manifestação que eu esperara pela morte do meu pai por parte dos militares e portanto não esperava nada de bom deles. Quando vi que as coisas não se passavam como receava, senti um profundo alívio e vivi a revolução, mas não na rua.

Funeral de Humberto Delgado

Estávamos todos muito traumatizados e não tive aquela libertação que o 25 de Abril deu a muita gente que não estava sobrecarregada com o peso de uma tragédia. Lembro-me de ter ido comprar um rádio pequeno, porque não tinha rádio em casa, para ouvir o que se passava.

Não senti muito entusiasmo porque para mim ia sempre existir o regime, não tinha visualizado que um dia havia de cair e nunca pensei que por mão dos próprios militares que andavam há três anos a matar em África. Tive uma grande surpresa e levei um certo tempo a adaptar-me à ideia.’

A mulher ainda não conquistou o seu espaço

A revolução trouxe a democracia e novos valores, mas como ficou a mulher neste novo esquema de sociedade? ‘Não me parece que ocorresse uma libertação tão espontânea. Pode ter havido naqueles primeiros fogachos revolucionários a ideia de libertação, porque a mulher esteve presente nas ruas mas não foi o simples acto de mudança de poder que levou a que esta encontra-se eco para as suas ânsias de liberdade. E basta-nos ir aos supermercados para vermos que há um processo de exploração da camada jovem feminina. Em relação há época de Salazar, a mulher era encaixada no nicho doméstico. É evidente que o sistema político tem muito a ver com o processo de não escravização da mulher, mas esta já é escrava do seu corpo e dos filhos.

Foi para isto que lutámos

A democracia e a liberdade têm sido bem ou mal aproveitados pelos portugueses?

‘Quando alguém me vem falar acerca da democracia e se queixa: “não foi para isto que lutámos” digo logo ‘foi exactamente para isto que lutamos, para esta democracia. Não há democracias boas nem más, não venham penalizar esta democracia porque há muita confusão ou escândalos, porque também havia antes, mas estavam escondidos. Havia uma sensação de ordem e limpeza que era falsa. Agora a comunicação social ataca logo e todos ficam a saber e isso é muito mais saudável.

Memórias escondidas

E como encara agora o papel do pai perante a actual sociedade portuguesa? ‘É ainda uma figura um pouco maldita porque teve, durante muitos anos, uma campanha contra ele. E os militares apenas agora estão a convencer-se de que ele foi um camarada de armas que se bateu contra o inimigo, especialmente porque foi o primeiro a alertar contra a guerra colonial e para o perigo que Portugal passava nas mãos de Salazar.

Por outro lado, há uma criação mítica de uma figura pela própria população. É o herói popular por seu mérito próprio, que continuaria a existir mesmo que eu não fizesse nada, porque o que fez foi muito profundo. Ele é e será sempre um herói popular.’

Muito mais foi dito, muito ficou por dizer, mas as memórias irão permanecer para sempre, enquanto uma voz se levantar para as lembrar.

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